Salvar a última costa selvagem

Maria Santos

5 de Maio de 2023 – Jornal Público

A Associação Dunas Livres submeteu uma providência cautelar contra o projecto Na Praia a 22 de fevereiro. Este “Conjunto Turístico” na Península de Tróia destruirá 200 hectares de habitats dunares únicos, além de acabar com mais 2km da pouca costa selvagem que ainda nos resta.

Em pleno séc. XXI e Década das Nações Unidas para o Restauro dos Ecossistemas, tal nunca deveria suceder… supostamente.

Um Estudo de Impacte Ambiental, que enumera dezenas de impactes ambientais negativos e declara os impactes “eliminação de habitats” e “de valores florísticos” como “negativos, directos, certos, permanentes, irreversíveis, de magnitude forte e muito significativos”, “com uma proporção muito importante de endemismos e de espécies alvo de protecção”, e que “condiciona o cumprimento dos objetivos de conservação legais”, nunca seria ignorado, supostamente.

Supostamente, uma Declaração de Impacte Ambiental decorreria logicamente dos argumentos desse estudo; mas neste caso, resumiu os vários impactes negativos a dois apenas, contrapôs com um impacte positivo elaborado (a construção de um heliporto) e deu um parecer favorável, embora cheio de condicionantes – que serão fiscalizadas? Supostamente.

Supostamente, haveria ordenamento do território baseado na ciência. Já se teria actualizado o Plano de Urbanização de Tróia, herdado do Estado Novo, para transformar uma restinga paradisíaca no maior centro turístico de então. Dois terços da Península acabam sempre excluídos de quaisquer estatutos de protecção por isso, mesmo quando se criou a Reserva Natural do Estuário do Sado em 1980, ou agora no novo Programa da Orla Costeira Espichel-Odeceixe, apesar de completar todos os critérios para tal, excepto o dos interesses privados.

Supostamente, haveria um processo de contraordenação sobre um promotor imobiliário que comece obras de terraplanagem e asfaltamento de dunas com remoção total de vegetação protegida, sem nenhum alvará afixado, e denunciadas formalmente às autoridades por 8 associações reconhecidas. Ao invés, e no mesmo dia, a Câmara Municipal de Grândola emite uma licença precária de obras de estaleiro.

Supostamente, o acesso a documentos de licenciamento de um projecto como este é um direito público. Pedimos durante 2 anos; enviámos 3 queixas à CADA. Sempre sem resposta, fomos a tribunal. O caso foi deferido mas a autarquia cobrou-nos 1180,52€ pelos documentos.

Supostamente, uma das condições para o projecto avançar era a de não destruir núcleos delimitados de vegetação protegida pela Directiva Habitats. Contudo, sabemos através de um ofício do ICNF, que no seguimento da nossa denúncia se deslocou ao terreno, parecendo a única entidade que ainda protege o interesse público, que já ocorreu um crime ambiental grave. Supostamente, o promotor seria contraordenado mas a entidade responsável, a CCDR Alentejo, simplesmente arquivou o caso.

A providência cautelar foi aceite pelo Tribunal Administrativo de Beja mas logo o Presidente de Grândola declarou o Na Praia como um projecto de interesse público o que permitiu que as obras retomassem de imediato.

Supostamente, o projecto teria de beneficiar toda uma comunidade e não causar mais dano do que esse suposto benefício para ter interesse público, mas a verdade é o contrário: o único interesse deste projecto é privado.

Supostamente, nem teríamos que ter todo este trabalho por algo tão óbvio. Não seríamos tão obstaculizados por organismos públicos, coniventes com interesses privados. Não teríamos um governo de Terceiro Mundo que vende o país como um resort e abandona as pessoas. Mas em Portugal não acontece o que é suposto.

Esta é a triste realidade com que se depara uma iniciativa de cidadãos para contestar um projecto apenas, fundada na ciência e na lei e apoiada por milhares de portugueses, muitos dos quais doaram no respectivo crowdfunding.

Existem sete outros resorts, a maioria muito maior do que o Na Praia; quatro com campo de golf, neste concelho em seca extrema. Voltaremos a falar sobre isto.

Dia 25 de Abril vamo-nos manifestar em Grândola contra o greenwashing, o turismo irresponsável, os atentados ambientais, a incompetência política e a corrupção. Vamos marchar pelo respeito pelas populações locais e gerações futuras, pela conservação da água e preservação do último troço de litoral selvagem de Portugal. Junta-te a nós às 10h30 em frente à câmara municipal.

Assina a petição para revogar o Plano de Urbanização de Tróia aumentando a Reserva Natural do Estuário do Sado. Ajuda com um donativo. Espalha a palavra*

:: Ler artigo original no Jornal Público aqui ::

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