Movimento Dunas Livres, Setembro de 2020
A Associação Dunas Livres vem desta forma expressar as preocupações, prioridades e opiniões informadas de um grupo de cidadãos interessados no estudo e preservação das paisagens e ecossistemas presentes no litoral Português, nomeadamente entre Tróia e Sines.
Esta faixa costeira Tróia-Sines é uma das últimas e mais bem preservadas zonas do litoral ibérico, um tesouro natural único que até hoje escapou às pressões que se fazem sentir na orla costeira1. No entanto, a classificação territorial não acompanha, nem salvaguarda, o seu Património Natural único. As urbanizações previstas para as denominadas Unidades Operativas de Planeamento (UNOP) 4, 7, e 8 frontalmente, assumidamente e irreversivelmente um Património Natural insubstituível.

Mapa de alguns dos projetos turísticos planeados ou executados desde a Península de Tróia até Melides.
A península de Tróia, onde se encontram as UNOP 4, 7 e 8 em causa, constitui uma formação estuarina particularmente sensível, com ecossistemas dunares e zonas húmidas fundamentais do ponto de vista ecológico e ambiental. Nos dias de hoje, esperávamos que se estivesse a discutir a expansão da Rede Natura 2000 para zonas de elevado interesse ecológico, e não a facilitar a sua destruição através do licenciamento de urbanizações.
A maior ameaça à integridade ecológica da região é o iminente desenvolvimento imobiliário, turístico e urbanístico de luxo projectado para as UNOP referidas. De forma generalizada, contempla-se a construção de hotéis, aldeamentos de moradias e apartamentos turísticos, além de outras infra-estruturas recreativas ou de apoio logístico. Fazemos notar que as Avaliações de Impacto e Ambiental destes projetos apresentaram pareceres altamente condicionados2,3, e cujas solicitações são por vezes consideradas não aplicáveis2; além do mais, a Avaliação dos projetos para a UNOP 4 foi publicada há mais de uma década3, o que não é aceitável.
Discriminadamente, o Tróia Eco-Resort planeado para a UNOP 4 está localizado na laguna conhecida como Caldeira de Tróia: uma zona húmida particularmente relevante para espécies ao abrigo da Directiva Aves da Rede Natura 20004. O Conjunto Turístico “Na praia” nas UNOP 7 e 8 estará em terrenos dunares adjacentes à Reserva Botânica das Dunas de Tróia, com a qual partilham características ecológicas e cujo estado de conservação é excelente, carecendo de uma avaliação apropriada com base em dados atualizados.

Sistemas dunares na zona da UNOP8 do Plano Urbanístico de Tróia. Fotografia de 21 de Junho de 2020.
Esta carta reflete a nossa surpresa e indignação pela ausência destas unidades territoriais no traçado original da Reserva Natural do Estuário do Sado, dadas as suas características ecológicas. Objetivamente, a sua inclusão parece essencial e lógica para o sucesso dos objetivos de conservação que levaram à classificação desta área protegida.
A urbanização desregulada é um erro já demasiadas vezes repetido ao longo da costa portuguesa e no qual é inadmissível cair de novo, especialmente em 2020 e perante acordos e compromissos internacionais como a Agenda 20305, o Acordo de Paris6, a Convenção sobre a Diversidade Biológica7 e a nova Década das Nações Unidas para a Restauração de Ecossistemas (2021-2030)8.
Esta associação é pelas Dunas Livres da construção insustentável; é pelo investimento num futuro verdadeiramente valioso para as populações locais e vindouras; é pelo respeito da participação dos cidadãos nas decisões estruturantes de Portugal; é pela defesa de um património de valor incalculável para o Mundo.
A defesa do património natural único e insubstituível da Peninsula de Tróia é da responsabilidade de todos. Por tudo o que foi mencionado nesta carta, requeremos que toda esta área seja abrangida pela Reserva Natural do Estuário do Sado, e obtenha assim o estatuto de conservação e a protecção que merece.
O Património Natural das UNOP 4, 7 e 8 e as mais recentes ameaças sobre este património
Toda a península de Tróia é uma enorme duna geomorficamente dinâmica que, mediando a fronteira com o Oceano Atlântico, cria e abriga a baía do Estuário do Sado, morada de uma flora e fauna emblemáticas, da qual os golfinhos-roazes constituem o exemplo mais mediático, ou as pradarias marinhas, cujo reconhecimento está a crescer globalmente. Infelizmente, a sua integridade pode ter sido afetada recentemente em Dezembro de 2019, pelas dragagens no Porto de Setúbal9,10.
Os sistemas dunares bem desenvolvidos, que se prolongam para além da linha do mar, desempenham um papel fundamental na protecção contra a erosão costeira11,12, sendo que esta função assume especial importância na região em causa, devido à ameaça da subida do nível das águas do mar e da intrusão da cunha salina na bacia do Estuário do Sado1.
As dunas de Tróia albergam várias espécies endémicas e raras, incluindo espécies protegidas a nível europeu pela Directiva Habitats da Rede Natura 2000, muitas delas ameaçadas. É facilmente constatável a presença de vários destes habitats, alvos de protecção por Directiva Europeia13, tanto dunares como de zonas húmidas, e uma invulgar riqueza florística em excelente estado de conservação. Encontramos esta exuberante biodiversidade prevalente (infelizmente) em terrenos da península actualmente sujeitos a planos de urbanização.
Não esquecemos também a importância da manutenção desta formação arenosa dinâmica sob coberto de vegetação para a recarga do aquífero do Tejo-Sado, essencial às populações e economias locais e
regionais14. A negligência da importância de recursos hídricos saudáveis e de uma utilização ponderada,
sobretudo em regiões arenosas e áridas, é particularmente escandalosa e cara para o povo português,
que sofre repetidamente de seca15. A sua salvaguarda é então de interesse público, pelo que a conservação deste aquífero ganha uma nova dimensão, sobretudo considerando o já avançado estado de urbanização desta zona.
A missão do Movimento Dunas Livres
Acreditamos no valor intrínseco e funcional deste património natural notável, bem como na importância da sua protecção e melhoramento do estado de conservação do mesmo através de uma gestão adequada. Exercemos o direito de manifestar descontentamento em relação às decisões de ordenamento e gestão territorial desta zona. Defendemos assim que é nosso dever, como cidadãos, participar activamente e exigir a protecção destes ecossistemas, tanto pelos serviços de valor incalculável que já hoje em dia nos prestam, como pelos que, incrementalmente, virão a proporcionar às gerações futuras.
Porque consideramos que a conservação da Natureza só é compatível com incentivos económicos e sociais sustentáveis, trazendo benefícios às comunidades locais e nunca existindo separada destas, sugerimos uma revisão da estratégia de desenvolvimento para a região. Defendemos que as praias e natureza envolvente devem ser acessíveis a todos, para serem usufruídas de forma responsável.
Solicitamos a protecção integral destes valores naturais e comunitários face a pressões externas que ponham em causa a sua integridade, em particular na orla costeira.
Tabela de habitats-alvo da Directiva Habitats, Rede Natura 200013, observáveis nas UNOP 4, 7 e 8 da Península de Tróia
Tipo | Código | Habitat |
---|---|---|
Dunar | 1210 | Vegetação anual das zonas de acumulação de detritos pela maré |
2110 | Dunas móveis embrionárias | |
2120 | Dunas móveis do cordão litoral com Ammophila arenaria (“dunas brancas”) | |
2130pt1 | Dunas fixas com vegetação herbácea (“dunas cinzentas”) | |
2150pt1 | Dunas fixas descalcificadas atlânticas (Calluno Ulicetea) | |
2190pt1 e pt2 | Depressões húmidas intradunares | |
2230pt1 e pt2 | Dunas com prados da Malcolmietalia | |
2250pt1 e pt2 | Dunas litorais com Juniperus spp. | |
2260 | Dunas com vegetação esclerófila da Cisto-Lavenduletalia | |
2270 | Dunas com florestas de Pinus pinea e ou Pinus pinaster | |
2330 | Dunas interiores com prados abertos de Corynephorus e Agrostis | |
Zonas húmidas | 3110 | Águas oligotróficas muito pouco mineralizadas das planícies arenosas (Littorelletalia uniflorae) |
3160 | Lagos e charcos distróficos naturais | |
6420 | Pradarias húmidas mediterrânicas de ervas altas da Molinio-Holoschoenion | |
7140pt3 | Turfeiras de transição e turfeiras ondulantes |
REFERÊNCIAS
- Filipe, L. G., Gamboa, M. & Sirgado, J. R. Ordenamento do Litoral. A Orla Costeira Sado-Sines.
in Actas do 4o Congresso da Água, Lisboa 1–23 (1998). - RNT_t19082/00 RECAPE do Conjunto Turístico “Na Praia” (UNOP 7 e UNOP 8 do PU de Tróia).
- Declaração de Impacte Ambiental da Ocupação Turística da UNOP 4 de Tróia.
- Diretiva Aves (79/409/CEE e 2009/147/CE), de 30 de novembro de 2009.
- https://sustainabledevelopment.un.org/post2015/transformingourworld
- https://apambiente.pt/index.php?ref=16&subref=81&sub2ref=1367
- http://www2.icnf.pt/portal/pn/biodiversidade/ei/cbd
- https://nacoesunidas.org/onu-declara-decada-sobre-restauracao-de-ecossistemas/
- https://www.pan.com.pt/pan-pede-revogacao-da-autorizacao-para-as-dragagens-no-sado/
- https://observador.pt/2019/12/03/dragagens-no-estuario-do-sado-comecam-na-semana-de-9-
a-15-de-dezembro/ - Moore, L. J. & Murray, A. B. Barrier dynamics and response to changing climate. (Springer,
2018). - NSW Department of Land and Water Conservation. Coastal Dune Management: A Manual of
Coastal Dune Management and Rehabilitation Techniques. (2001). - Diretiva Habitats 92/43/CEE do Conselho, de 21 de maio de 1992.
- Oliveira da Silva, M. Comportamento da Interface Água Doce / Água Salgada na Península de
Tróia Utilizando o Modelo Matemático Feflow. in (2006). - https://sicnoticias.pt/pais/2020-01-08-Quase-40-de-Portugal-continental-mantem-se-em-situacao-de-seca